O bode expiatório
Tratar o Teto de Gastos como a gênese do problema fiscal e defender que sua queda será solução é, de certa forma, uma cloroquina fiscal.
Em coluna recente no jornal O Globo, a jornalista Flávia Oliveira argumentou que o Teto de Gastos, regime fiscal adotado pelo Governo Federal no fim de 2016, seria uma “cloroquina”. Certamente foi uma tática retórica para chamar atenção. Flávia é uma das jornalistas que melhor escreve sobre economia no país e sabe como intervir, de forma cortante, no debate. Neste sentido, falar que o Teto de Gastos seria uma cloroquina é uma isca. No entanto, não foram poucos agentes políticos e leitores que ficaram com a impressão de que ela realmente acredita nessa hipotética semelhança entre o Teto e a cloroquina – e muitos provavelmente concordam.
Por que o Teto de Gastos foi criado: uma breve recordação
Esquecemos constantemente do porquê de termos o Teto de Gastos. Entre 2001 e 2010 vivemos sob um regime de estabilidade macroeconômica bastante eficiente: o Tripé Macroeconômico. Apesar do boom de commodities ser fundamental pelo lado da receita, a sustentação de um regime fiscal responsável aliado à meta de inflação e câmbio flutuante permitiu a estabilidade necessária para incluir milhões de pessoas.
No entanto, por uma visão de desenvolvimento, o governo da então presidente Dilma Rousseff abandonou o Tripé já no seu primeiro ano de governo. O famigerado cavalo de pau na taxa de juros e a desvalorização forçada da taxa de câmbio visando favorecer as exportações (SINGER, 2015) levaram a uma ineficiência na política cambial. Trabalhos recentes de Marcelo Kfoury Muinhos e Filipe Gropelli Carvalho mostram que o Banco Central no governo Dilma perseguiu uma meta de inflação implícita muito maior do que a oficial – não por acaso, esse foi um período em que o Banco Central teve baixíssima autonomia formal. E quanto à responsabilidade fiscal… Bom, neste caso temos que falar de descumprimento de regras.
A Regra Fiscal presente no Brasil à época era a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Dentro da LRF, fica estabelecido que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) deve determinar quais são asmetas de resultado primário que balizariam a gestão orçamentária e, se esta regra fosse crível, o mercado seria capaz de ancorar suas expectativas às metas. Este sistema não é imune de críticas técnicas, claro, mas salta aos olhos o fato do seu flagrante e sequencial descumprimento.
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva descumpriu as metas da LRF duas vezes: em 2006 (curiosamente, uma das mais flexíveis) e após a crise de 2008. Um dos principais motivos para o descumprimento, com exceção das flutuações internacionais, foi a implementação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), um programa sem efeitos positivos comprovados, mas, ainda assim, uma política pública bem definida e clara.
No entanto, o governo Dilma abertamente ignorou suas responsabilidades em relação à regra. Mesmo com a possibilidade de alterar as metas, o governo Dilma se viu forçado a alterar os critérios de definição de metas sequencialmente, chegando a propor em 2013 um sistema de bandas de forma a permitir maior flexibilidade. Mesmo assim, as descumpriu.
Para uma boa revisão da erosão da LRF recomendo o texto de Braulio Borges e Manoel Pires (2020). No entanto, tomando as metas fiscais abaixo, fica claro que elas passaram longe da centralidade na política econômica de Dilma Rousseff. O gráfico abaixo aponta como, mesmo com resultado fiscal extremamente flutuante, a equipe econômica manteve a meta estável.
Em particular, isto foi fundamental para auxiliar a gestar e aumentar a pior crise econômica em um século no Brasil. À medida em que o choque fiscal ficou evidente, houve uma crise informacional com a regulação das pedaladas e da contabilidade criativa, o que teve um impacto informacional a la Robert Lucas, Jr. (CAVALCANTI et al, 2019). A esquerda à época não compreendeu isto, como fica notório na fala do economista Luiz Gonzaga Belluzzo de que se deveria enganar o mercado.
Isto não é uma defesa de ataques à esquerda, mesmo porque a direita nacional é extremamente irresponsável do ponto de vista fiscal. Notem, o governo de Jair Bolsonaro furou o Teto flagrantemente seis vezes (a maioria delas com apoio da oposição e do PT, vale lembrar) não por problemas técnicos da regra fiscal, mas por caracteristicas institucionais nacionais. Por um lado, o orçamento brasileiro é extremamente rígido, e issto não vai mudar com a nova regra fiscal; por outro, vivemos em um presidencialismo de coalizão e o presidente menos qualificado do mundo tentou governar sem um partido e ameaçando as instituições democráticas constantemente. O custo de governar foi alto e Bolsonaro pagou por ele. O Teto deveria ter contido Bolsonaro? Sim, e não conteve. Ao mesmo tempo, não sei se uma regra fiscal o conteria.
O problema era das regras? Sim e não. Instituições surgem para limitar os agentes, impedir que tomem decisões que sejam positivas individualmente (como se reeleger) em função do custo social. O framework do Tripé Macroeconômico foi incapaz de conter uma visão de desenvolvimento danosa por parte de Dilma. O problema foi Dilma e sua coalizão trocarem a estabilidade macroeconômica por um crescimento econômico desigual no curto prazo, repetindo uma fórmula que sequencialmente entrega o mesmo resultado deletério no Brasil. O problema é menos da regra e mais do fato do Brasil produzir agentes políticos com estes incentivos.
Dado que Dilma descumpriu a LRF, era necessário criar uma regra mais crível. E credibilidade neste contexto seria criar uma regra capaz de limitar a discricionariedade do executivo. Não é por acaso que o Teto de Gastos surgiu, em particular, o próprio governo Dilma possuía uma proposta de Teto, simplesmente o governo não era mais confiável.
O Brasil não é o único país a ter um Teto de Gastos. Outros possuem regras, implícitas ou explícitas, tais quais Alemanha, Suíça e Holanda. É natural que o Teto brasileiro seja diferente destes países, uma vez que as regras fiscais são contingentes e endógenas às instituições nacionais. Neste sentido, o fato do Teto estar na constituição é menos absurdo do que parece (até o Colégio Pedro II está na Constituição).
Qual é a cloroquina do debate fiscal?
Retomemos o período doloroso do auge da pandemia… Por que surgiu a querela da cloroquina? A substância foi apresentada como um dos componentes que faziam parte do chamado “tratamento precoce” contra o coronavírus. O uso da cloroquina não é reconhecido e não é indicado pela Organização Mundial de Saúde para o tratamento ou prevenção da COVID-19, mas foi amplamente divulgado pelo presidente Jair Bolsonaro e sua militância como uma estratégia para combater o coronavírus. A cloroquina seria uma bala de prata, algo que garantiria uma saída fácil para a pandemia.
Ora, o atual presidente Jair Bolsonaro queria se reeleger e sabia que sua popularidade dependia explicitamente do resultado econômico. Ele não estava errado. Regressões preliminares apresentadas por Fernando Meireles, do CEBRAP, apontam para o fato de que o Auxílio Brasil teve efeitos relevantes sobre o voto favorável àquele que ainda ocupa a cadeira de presidente no papel, a mortalidade na pandemia não.
Neste sentido, o que seria a cloroquina no debate fiscal? Já tivemos tantas… CPMF, imposto único e, agora, acreditar que o problema de composição dos gastos e crise social é causado pelo Teto de Gastos. A cloroquina seria acreditar que uma regra fiscal mais flexível ou que nenhuma regra fiscal tornaria o país melhor, um lugar com mais investimento em saúde e educação e sem orçamento secreto. Por que seria uma cloroquina? Porque focar apenas no Teto esconde discussões fundamentais sobre a formação do sistema orçamentário e sobre as instituições brasileiras.
O que nos leva a avaliar os efeitos do Teto. E aqui, a comparação com a cloroquina ganha contornos mais sórdidos. Efetivamente não avaliamos corretamente o Teto de Gastos do ponto de vista científico e oproblema se dá na dificuldade de criar um contrafactual. Em particular, é muito complicado estabelecer identificação causal em macroeconomia sem um choque exógeno ou algum tipo de modelagem complexa que consiga contabilizar os efeitos de um choque estrutural, uma vez que não é possível fazer políticas apenas para metade da população e controlar pela outra (NAKAMURA & STEINSSON, 2018) (FUCHS-SCHUNDEL & HASSAN, 2016)
Evidências preliminares dos pouquíssimos trabalhos neste sentido apontam para o fato de que o Teto cumpriu o seu dever no curto prazo. Apontam impacto positivo sobre a taxa de juros de longo prazo (RODRIGUES, 2020) e, portanto, sobre inflação e crescimento. Há também, um pouco volume de produção usando local projections (CAVALCANTI, 2021).
Não há, no entanto, trabalhos que consigam substanciar as críticas ao Teto empiricamente. Mesmo artigos de economistas renomados como Esther Dueck e Pedro Rossi falham em reproduzir o mínimo desejado para uma avaliação empírica a padrões dos últimos 40 anos. Em geral, partem de alguma hipótese extremamente irreal, como a premissa de que o orçamento público seria o mesmo com ou sem o Teto. Isto é inaceitável como evidência, pois não é um contrafactual válido. Seria, implicitamente, assumir que o Teto de Gastos não teve nenhum impacto sobre o crescimento (seja ele positivo ou negativo) e, por consequência, na renda dos cidadãos e no orçamento público.
Além disso, desconsidera os efeitos sobre inflação, investimento, taxa de juros, câmbio… Assume, basicamente, que o Teto não teve impacto macroeconômico para tentar estimar um impacto macroeconômico produzido pelo Teto… Não tem como dar certo. Isto para não falar nos incentivos comportamentais sobre agentes de mercado, famílias e políticos. Em suma, querer defender estas críticas é mais próximo dos defensores da cloroquina, uma vez que se baseiam em estudos cuja validade empírica é nula.
Temos, portanto, duas dimensões pelas quais as críticas ao Teto de Gastos estão mais próximas da cloroquina fiscal do que parece. E há uma razão trivial para isto: trata-se de uma discussão mais política do que científica, uma vez que não há estudos o suficiente para avaliar o Teto.
Compete, no entanto, avaliar que, das várias propostas apresentadas na mídia até agora, de Felipe Salto à Monica de Bolle, apenas a proposta de Armínio Fraga e Marcos Mendes abandona o Teto (ou deixa de usá-lo como pilar central). E para tal propõem um corte de gastos mais agressivo que as outras e um limite para a Dívida/PIB.
Tetos de Gastos são regras fiscais comuns no mundo inteiro e é necessário ter uma regra para gastos no Brasil. Pode-se argumentar que o Teto Fiscal atual é tecnicamente inviável ou que ele deve ser ajustado (algo que economistas ortodoxos, ditos fiscalistas, como Fabio Giambiaggi e Guilherme Tinoco (2019), defendiam desde o início); porém, assumir que o problema central da política fiscal está nele… Aí sim está a cloroquina do debate fiscal.
Cloroquina fiscal é achar que apenas mudando a regra fiscal se gerará mais espaço para gastos. Não vai justamente porque há uma restrição financeira aos gastos, com consequências sociais que impactam diretamente a saúde da democracia e porque a origem da crise fiscal não está nos detalhes técnicos de uma regra fiscal, mas nas instituições nacionais, afinal, o Brasil é irresponsável fiscalmente desde 1822 com breves períodos de sanidade (CARIELLO & ZAMBERLANE, 2022) (ABREU et al., 2022) (ABREU, 2020). O importante é convencer os stakeholders a compreender o custo social do aumento do déficit, mesmo que o viés pró-deficit seja altíssimo (HALAC & YARED, 2022) e que este custo social pode piorar ainda mais a situação da democracia nacional.
O que nos leva à situação atual. É triste lembrar isso a muitos brasileiros, mas o Brasil é só um país emergente e, igual a ele, vários no mundo são capazes de atrair investimentos. Em particular, se pré-pandemia já havia uma preocupação enorme com a dívida dos emergentes até por organismos internacionais, como destacou o Banco Mundial em seu relatório Global Waves of Debt, pós-pandemia o cenário é ainda mais assustador. A média da dívida pública dos emergentes está em 67,4% do PIB, de acordo com dados do FMI; a relação dívida bruta sobre PIB do Brasil está em 75%, e tende a ir a 95% caso a PEC de transição inteira seja aprovada, de acordo com as contas da Instituição Fiscal Independente. Não há Banco Central que aguente o impacto que isso tudo vai ter na inflação.
Compreendo que estamos em um período muito delicado. Não sou psicólogo, mas sei que o governo Bolsonaro deixou traumas que vão ter impactos geracionais.Nos últimos anos, não processamos o luto de 700 mil mortos, passamos pela dor de ver 33 milhões de brasileiros em situação de fome, vivemos com o medo de lidar com a institucionalização do racismo, do ódio, da intolerância religiosa e da violência, entre outros episódios. Mas precisamos (ou tentamos) nos manter firmes..
Parte do problema social no Brasil está diretamente relacionado à crise fiscal que o país enfrenta. Como a dívida do Brasil é alta demais, os investidores se refugiam no dólar e, por consequência, em ativos que pressionam a taxa de juros nacional. Por mais que os defensores da MMT façam a homilia de que países não quebram em moeda local (o que não é exatamente verdade, existem pelo menos 32 casos de países dando default em dívidas denominadas em moeda local documentados pelo Bank of Canada e pelo Bank of England) o fato é que o risco fiscal impacta negativamente a situação social do país, uma vez que o câmbio elevado impacta a inflação e a taxa de juros a renda disponível (MENDONÇA, 2022).
A questão do risco fiscal é composta por problemas estruturais de gastos e externos, mas também, a dívida é fundamentada por questões políticas (YARED, 2019). Há um otimismo exacerbado por parte dos analistas. Por um lado, Lula enfrenta um cenário externo pior, com taxas de juros dos países centrais mais elevadas e com a China crescendo menos.
Por outro, enfrenta um cenário doméstico ainda mais preocupante, uma vez que o Centrão se encontra mais sensível a clivagens ideológicas. Valdemar da Costa Neto fez o favor de nos lembrar na sua última tentativa de contestar o cenário eleitoral. Ação racional, por sinal, afinal Valdemar sabe que o PL teve sucesso eleitoral graças ao bolsonarismo e vai embarcar nessas empreitadas para manter os deputados agrupados no seu partido, uma vez que o tamanho do partido é justamente o seu principal ativo de negociação no Congresso. Veremos o Centrão constantemente dialogando com a extrema direita mesmo no governo Lula, e colocando desafios ao governo.
Além disso, diversos grupos de interesse vão se opor a pautas como Reforma Tributária, como ficou claro com a invasão de fazendeiros à Assembleia Legislativa de Goiás. Não menos trivial é conciliar os interesses diversos presentes na Frente Ampla, o que está prejudicando a própria Equipe de Transição.
Em suma, os agentes de mercado observam uma deterioração fiscal (MENDONÇA, 2022), o que impacta diretamente a composição das carteiras dos investidores (MAGALHÃES, 2022) e a própria composição da dívida pública (BASTOS, 2022). E isto é fundamental, pois há uma tendência cada vez maior à taxa de câmbio real -aquela que derruba qualquer governo pois impacta diretamente a inflação de alimentos- ser determinada por barulho no mercado financeiro (ITSKHOKI & MUKHIN, 2021a, 2021b).
O que nos resta? Uma reconstrução institucional que inclua o waiver no Teto para uma política social, aliada com reformas que modernizem o Estado (revendo privilégios e subsídios, por exemplo). Isto vai ser muito difícil e é fundamental acomodar os interesses do centro visando manter a governabilidade
Além disso, é fundamental abandonar a posição belicosa com o mercado e criar uma trajetória crível para a política econômica. Por um lado, é necessário entender que a confusão pelo nome do ministro e equipe, além de tensões de comunicação surgem porque não temos instituições estáveis.
Por outro lado, é fundamental compreender que o mercado financeiro é composto por diversos agentes desconexos e segmentados. Neste sentido, qualquer distorção na informação é capaz de gerar choques ao longo do sistema, e reputação passa a ser essencial (FAINGOLD & SANNIKOV, 2011). E como vimos anteriormente, isto pode ter consequências negativas perenes.
Neste sentido, acredito que tratar o Teto de Gastos como bode expiatório é a verdadeira cloroquina do debate sobre política fiscal. Não é a melhor regra, mas baliza as expectativas dos agentes por enquanto, a transição para uma nova regra deve ser menos belicosa, mais crível e mais eficiente. E apenas mudar a regra fiscal não vai melhorar o país.